sábado, 12 de junho de 2010

A idéia em Dostoiévski - 2

A importância da análise das personagens da obra de Dostoiévski para os estudos da Linguagem está em compreender de que modo a autoconsciência dessas personagens se elabora discursivamente e de modo polifônico (várias vozes do discurso, distintas vozes compondo a identidade das personagens. Ela elucida o ser discursivo que envolve toda a obra literária (o autor e o leitor-receptor, como seres reais de um sistema literário, e a obra propriamente dita, inalienável da realidade representada e povoada de seres, todos permeados e concebidos no discurso, na palavra). É um estudo que aponta para a rede discursiva como o espaço social sensível e vivo em que o ser é definido, sem contudo se completar, ou seja, o ser humano, como ser de fala, nasce dentro da palavra, e não o oposto. Sem haver previamente o discurso já organizado e predominante, não nasceria o ser.

Dessa forma, a personagem dostoievskiana, segundo a análise de Bakhtin, nasce caracterizada por uma habilidade de ação inusitada, na composição da trama literária. Sua atuação tem sempre como base esse estar da autoconsciência em oposição direta e inseparável com as linhas discursivas que atravessam a todo momento toda a representação da obra. E um conflito aberto e profundo com as outras personagens, sejam elas cordiais ou hostis umas com as outras. Como disse Bakhtin, " o dominante da representação do herói continua o mesmo: a autoconsciência. Por isso mesmo, o discurso sobre o mundo se funde com o discurso confessional sobre si mesmo. A verdade sobre o mundo é inseparável da verdade do indivíduo."

E é essa posição das personagens em confluência com o mundo que vai definir o originalíssimo conjunto ideológico de que Bakhtin se vale em suas análises, e que por si só já vale como um grande campo de discussão e conhecimento.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Lendo os "Problemas da Poética de Dostoiévski"

Cap A idéia em Dostoiévski
Página 77

#1 - Bakhtin é um dos autores mais eruditos que já li. Estudar o "universo artístico" de Dostoiévski é provavelmente uma das operações intelectuais mais complexas e avançadas de toda a cultura humana, já que o autor se empenha em construir chaves reais, análises profundas, corretas, intensamente elaboradas em fusão com a própria percepção da realidade, procurando fugir de toda abstração vazia, de toda vaidade intelectual.

A polifonia é um concerto totalmente novo para a arquitetura de nossa racionalidade. A própria razão deixa de ser o cerne do conhecimento, e passa a ser mais uma das funções do conhecer. Não é a ídéia da arquitetura que realmente importa, mas a efetiva formação de um saber-conhecer. Há algo de novo em tudo, como há algo de constante e regular, mas também há o imprevisto, o instável, o inacabado, como ele disse. A polifonia é o concerto de uma completude, plena e inacabada.

Dostoiévski era profundamente original, é disso que Bakhtin chama a nossa atenção, mas esse valor - profundamente original - refere-se a um estudo artístico, ou seja, Bakhtin como filólogo está dizendo que Dostoiévski levou a arte literária ao seu mais alto grau, à criação de um mundo, de um universo, o universo da obra de Dostoiévski. Mas, para isso, Bakhtin deve ser também profundamente original em sua análise crítica, em suas percepções, em suas inquietações mais profundas. É preciso ter o filtro, a lente e o receptáculo da arte do grande escritor russo, e estudar também o que outros já disseram sobre esses assuntos.

Ler este livro é como mergulhar em uma outra dimensão, existente, porém quase inalcançável, quase inatingível, provavelmente enredando-se e desdobrando-se pelos sítios mais inexplorados da realidade de nossa existência, e de nosso conhecimento.